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CONTO - REVIVESCÊNCIA



Estáticos, olhando pela janela, ele e ela, numa simbiose frenética, um mundo todo para além daquele vidro. Era primavera, tudo florescia, flores, pássaros, árvores, um clima ameno, a paisagem era revigorante. A admiração era inimaginável, os olhos nem piscavam, nas janelas dos olhos, a única coisa que viam daquela imensa janela do alto de um prédio era um belo casal. Nos olhos o desejo transbordava, na verdade, o anseio era por aquilo que não tiveram, que não foram, mas gostariam de ter sido, o desejo estava na possibilidade de se satisfazer naquilo que estava para nascer.

            A barriga proeminente, o que ali habitava não vivia, não! Revivia, revivia o desejo, o amor, a supervalorização, não dele, mas deles. A imagem ainda não passava de um borrão preto e branco no papel laminado, no entanto, já tinha sua função naquela casa. Uma casa de amor rodeada por reflexos e sustentada apenas por três paredes, cada uma era uma simbolização, tinham funções, não refletiam qualquer coisa. A primeira parede era a do amor a si mesmo, a segunda era a do amor àquilo que se foi, a terceira era feita de vidro e refletia tudo o que se estava do lado de dentro. No centro estava lá, um berço numa estrutura não de madeira, mas transparente, ali estaria abrigado aquilo que se gostaria de ser. Esta casa foi construída sobre um desejo, sob não, sobre! Pois a estrutura era de um desejo, o desejo de satisfação em si mesmo.

            Os dias se passavam, a ansiedade deles crescia de forma ilógica, estavam presos ali, ora de frente para a transparência do berço, ora para o vidro, admirando não a primavera, mas aquilo que queriam ver. Ao acariciar a proeminência o que sentiam era uma força centrípeta, convergindo para o seu interior, porém, era uma força que parecia carregar algo. Algo não era concreto, mas trazia um sentimento, um sentimento incessante, ou insensato, por assim dizer. O sentimento tinha um nome, mesmo com toda sua abstração, chamava-se completude.

            A expectativa não estava na subjetividade de um novo ser, estava na idealização, no retorno. Nascimento e retorno. Renascimento. Daquilo que remete ao Eu, mais especificamente ao eu ideal. Na primavera, florescia aquilo que havia de mais primitivo nele, nela, neles. Como um só, ansiavam aquilo que tinham perdido na mais tenra idade, e nesse movimento, fundamento sobre fundamento, o que se afundava cada vez mais, esvaecendo, Ideal do Eu. Renasce o desejo primitivo, desvanece a renúncia. A expectativa, por fim, estava no preenchimento da falta.

            O dia chegou! A vida revivida, a imortalidade do eu deles, eu onipotente. Pulsava um coração. Pulsão. A vida não convergia para a nova vida, convergia para as vidas já vividas, pulsão que pulsava para eles mesmo, num movimento de conversão para o desejo de pertencer a si mesmo. Nasce, inspira, expira. Dentro do berço transparente, ainda no local do nascimento, hospital, hóspede, o amor, amor àquilo que se gostaria de ser. Estáticos, olhando pelo vidro, ele e ela, numa simbiose frenética, uma vida para além daquele vidro. Era primavera, tudo florescia, vida! A admiração era inimaginável, os olhos nem piscavam, nas janelas dos olhos, a única coisa que viam daquele vidro era…seu próprio eu.

            Voltavam para a casa, as paredes aguardavam o retorno, o berço, em toda sua transparência, pulsava. Ao entrar pela porta de seu mundo, eles, por um momento, ficaram inertes. A parede de vidro refletia de tal forma que a primavera que se via através dele era afugentada. A única coisa que florescia nesse mundo interno era o desejo. Moveram-se direto para o berço, colocaram ali aquilo que, aparentemente, era uma vida. Revivida.

            Pela manhã, a luz que entrava pela imensa janela de vidro acordou ele e ela. Suas primeiras ações foram caminhar com entusiasmo diretamente para o berço, este que estava no centro de seu mundo. Passaram segundos, minutos, horas. Dias. Não viviam além daquela nova vida, além da sua própria revivescência. A realidade esvaecia, puro prazer! Admiravam, admiravam, admiravam. Amavam, amavam narcisicamente aquilo que viam. O que viam dentro do berço não era uma vida, era seu próprio si-mesmo. O bebê a que tinham dado a luz, naquele dia ameno de primavera, era, na verdade…um espelho! Não era uma vida, eram suas próprias vidas. Ele, ela, não sabiam. Admirava, amava. Suas imagens se mantinham ali refletidas, no entanto, não podiam ver seu próprio olhar.

Autoria: Débora Andrade

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