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RESENHA - MATERNIDADE, SHEILA HETI

MATERNIDADE, SHEILA HETI


Ser ou não ser mãe? Eis a questão!


O imperativo à maternidade, o filho como única (im) possibilidade de completude e realização da mulher. Nesse lugar, cabe escolha? Sem julgamentos, apedrejamentos e olhares tortos?


Uma coisa é certa: de exato, simples, linear e livre de contradições, nada tem o ser humano. Somos mistura de complexidade, ambivalência, oposição, indecisão… Desde os primórdios buscando respostas para dar sentido à nossa existência. E a maternidade é isso no meio do caos da humanidade. Em um momento da história, o ultimato: o único caminho para uma mulher encontrar o sentido da sua vida seria o filho. Esqueceram de mencionar que o bebê vêm, justamente, convocar a falta, a desidealização, a incompletude.


Maternidade tem prós e tem contras, tem ganhos e tem perdas, tem amor e tem ódio, tem harmonia e desarmonia, tem medo e tem confiança, tem poder e tem impotência, é repleta de contradições. 


O livro de Sheila Heti se configura como um romance corajoso, cheio de verdade, racionalidade e um toque de misticismo. Uma narrativa que provoca e nos convida a embarcar no mergulho psíquico da personagem que enreda sobre os ganhos e as perdas para a mulher que deseja - ou não - ser mãe.


Um título que a princípio leva logo a suposição do desejo de ser mãe. No seu transcorrer, o bebê não chega. A personagem escolhe. Analisa. Racionaliza. Joga com a sorte. Nos desafia a considerar outras possibilidades de desejo para a mulher. A maternidade nesta obra é contada pela via das mulheres que não querem ser mães, uma escolha ainda muito carregada pelo preconceito da sociedade.


O romance de Sheila Heti é escrito de forma híbrida, misturando ensaio com autoficção. Este último termo é usado na crítica literária para se referir a uma forma de autobiografia ficcional, sendo cunhado por Serge Doubrovsky em 1977, com referência ao seu romance Fils. A autoficção combina dois estilos paradoxais: autobiografia e ficção. O próprio estilo carrega contradição consigo. Diana Klinger fala dessa ambivalência da autoficção, na medida em que se configura como parte da cultura do narcisismo da sociedade midiática contemporânea e, ao mesmo tempo, se coloca numa linha de continuidade com a crítica estruturalista do sujeito e com a crítica filosófica da representação.


Sendo assim, a narrativa contemporânea e, por sua vez, o romance de Heti se situa no contexto da crítica filosófica do sujeito produzida no transcorrer do século XX. Tal crítica que tem início com Nietzsche a partir da desconstrução da categoria do sujeito cartesiano. A crítica nietzschiana do sujeito implica também a desconstrução da categoria a ele associada de verdade. O estruturalismo continua essa crítica estabelecendo um paradigma transdisciplinar com eixo na concepção lógico-formal da linguagem. Neste campo temos o psicanalista J. Lacan, que reformula o inconsciente freudiano e afirma que ele está estruturado como uma linguagem e que nele existem relações determinadas: é a estrutura que dá seu estatuto ao inconsciente. Foucault dos anos 1960 também toma esse caminho. Na escritura, diz Foucault (1994, p.793), “não se trata da sujeição de um sujeito a uma linguagem, trata-se da abertura de um espaço no qual o sujeito que escreve não deixa de desaparecer”.


Partindo desta perspectiva, podemos considerar que a forma de autoficção do livro ‘Maternidade’ implica um “cuidado de si” através da personagem que escreve desse lugar de reflexão sobre ser ou não ser mãe. Dessa forma, a autora permite que outras mulheres, ao lerem, também cuidem de si, cuidem das suas questões, se coloquem como protagonista da própria história. Sheila Heti revela sua verdade psíquica, sua verdade subjetiva.


A narrativa envolve uma personagem prestes a completar seus 40 anos, que mergulha dentro de si na busca pela resposta: ser ou não ser mãe? Trata-se de um livro com poucos episódios externos, mas repleto de acontecimentos internos, mentais. Ao longo do enredo nos deparamos com diversas questões filosóficas envoltas em um tempo longe de ser cronológico. A história se dá de modo espiralado, revelando o lado ilógico da mente humana, esse lugar atemporal, contraditório e sem funcionamento de causa-consequência. O movimento da personagem é divagar, ela vai e volta, retorna, rememora, percebe. Ela permanece nesse processo mental por todo o livro. No trecho seguinte esse elemento é bem perceptível:


“Frequentemente, eu contemplava o mundo de uma boa distância, ou simplesmente não o contemplava. A todo instante, sem que eu percebesse, pássaros sobrevoavam minha cabeça, nuvens e abelhas, o murmúrio das brisas, o sol sobre minha carne. Eu vivia somente no mundo cinzento e insensível da minha mente, no qual eu tentava racionalizar tudo sem chegar a nenhuma conclusão. Eu queria ter tempo para conceber uma visão de mundo, mas nunca havia tempo o bastante e, além disso, as pessoas que tinham esse tempo pareciam tê-lo desde muito jovens, elas não tinham começado aos quarenta. Se você tem quarenta anos quando começa, ainda pode ser considerado jovem. Para todas as outras coisas eu era velha, todos os barcos já tinham zarpado, estavam muito longe da praia, enquanto eu ainda tentava chegar à praia, sem saber nem sequer qual era o meu barco. A garota que estava em nossa casa - ela tinha doze anos - me fez, mais do que ninguém, enxergar minhas próprias limitações: minha fragilidade, minha obediência, minhas revoltas mesquinhas; sobretudo minha ignorância e meu sentimentalismo. Quando entrei na sala de estar pela manhã, tinha metade de um cachorro-quente sobre a mesa. Eu disse que era uma banana. Então eu soube que eu era velha demais para este mundo, que ela havia me superado com muita naturalidade, e que continuaria me superando. Minha única esperança era transformar a paisagem cinzenta e turva da minha mente em uma coisa sólida e concreta, totalmente separada de mim, algo que não fosse eu de forma alguma. Eu não sabia o que seria essa forma sólida, nem sequer qual formato ela teria. Eu só sabia que precisava criar um monstro poderoso, já que eu era um monstro tão fraco. Eu tinha que criar um monstro separado de mim, que soubesse mais do que eu, que tivesse uma visão de mundo e que não confundisse palavras tão simples” (páginas 13 e 14).


Em diversos momentos, a personagem, em seu processo mental de reflexão sobre ter ou não filhos, observa amigas suas que se tornaram mães. Ela percebe que há um movimento de dedicação completa aos filhos, uma ou outra que consegue conciliar carreira e maternidade. Este é um ponto nevrálgico para a personagem, a qual sabe que ao colocar um filho no mundo, vai precisar dedicar-se a esse ser e terá menos tempo para escrever, que é uma das coisas mais importantantes para ela, é algo que ama fazer. Escrever, além de um trabalho, traz sentido para a sua vida, é um objeto de desejo no qual ela se realiza. Nessa lógica, ter um filho seria, também, correr o risco de ficar sem escrever.


Durante suas divagações outra questão posta pela personagem é um fato que ela observa com frequência: as pessoas falando que colocar filhos no mundo é um ato de generosidade. No entanto, sua opinião é contrária: ter um filho implica um desejo próprio e, portanto, egoísta. Parece uma afirmação forte e que nos mobiliza, mas não deixa de conter uma certa verdade. No seu artigo ‘Introdução ao Narcisismo’, Freud (1914) traz como exemplo a relação pais-filhos para dizer que o Narcisismo Primário dos pais, aquele mais primitivo, se reatualiza nos filhos, que por sua vez, ocupam esse lugar de ideal de realização daquilo que não se poder ser ou fazer.


Além das provocações, Sheila Heti trouxe o elemento místico, no qual a personagem joga com isso no decorrer da narrativa. Ao mesmo tempo que ela disseca esses prós e contras racionalmente, ela brinca com o acaso para saber se deve ou não ter um filho e tomar algumas decisões importantes em sua vida. A personagem faz isso através do Shing, um jogo de moeda que confere respostas ao jogador, bem como um episódio em ela foi visitar uma cartomante. Dessa forma, o enredo mescla humor e leveza com racionalidade lógica. 


Todo o livro configura-se em tom de crítica à pressão cultural e ao preconceito da sociedade em relação às mulheres que não são mães. A personagem vai de encontro a essa maternidade compulsória, trazendo a reflexão e o questionamento: “como assim? a maternidade não é a maior e única realização da mulher?”. Nesse contexto, a personagem aborda a expectativa construída socialmente de que a mulher é a figura que deve cuidar, de forma que mesmo sem ser mãe, nos vemos diante de situações nas quais precisamos cuidar, ser “mães” de outras pessoas.


“Na verdade, a coisa mais difícil é não ser mãe - se recusar a ser a mãe de quem quer que seja. Não ser mãe é a coisa mais difícil do mundo. Há sempre alguém pronto a se meter no meio do caminho que leva uma mulher a sua liberdade, percebendo que ela não é mãe, tentando transformá-la em uma. Sempre haverá um homem ou outro, ou sua mãe e seu pai, ou alguma jovem ou algum jovem que se mete no meio da sua luminosa e cintilante estrada para a liberdade, e se adotam como filhos, forçando-a a ser sua mãe. Quem vai engravidá-la agora? Quem irá surgir, fincar os pés diante dela, e dizer com um sorriso: Oi, mãe! O mundo está cheio de gente desesperada, pessoas solitárias e meio desarranjadas, pessoas sem solução e pessoas carentes com sapatos que fedem e meias esburacadas que fedem - pessoas que querem que você faça com que tomem suas vitaminas, ou precisam do seu conselho a todo momento, ou que simplesmente querem conversar, tomar uma cerveja - e te persuadir a ser a mãe deles. É difícil perceber quando está acontecendo, mas antes que você perceba - aconteceu” (página 186).


Uma das questões centrais da narrativa concerne à história da personagem com a sua avó e sua mãe. Dessa forma, as reflexões são acompanhadas de memórias marcantes. Apesar de ter vivido de forma confortável, ela sempre sentia que sua mãe estava triste e que essa tristeza estava relacionada com o fato dela ser mãe. Com isso, a personagem divaga sobre a tristeza das mães, partindo dessa experiência com sua própria mãe, a qual ela via chorando com frequência. Sem dúvidas, podemos perceber que esse aspecto deixou uma marca psíquica, o que pode compor parte da decisão da personagem em não ser mãe. Afinal, em sua história de vida, ser mãe estava associado à ser triste e chorar. Nesse sentido, a forma como o livro termina fala por si, quando a personagem conta a resposta de sua mãe ao livro:


“Quando a manhã chegou, sentei na cama da pequena casa em que estava hospedada e estendi minha mão para a cabeceira, onde estava meu telefone. Havia um e-mail da minha mãe, que havia chegado dez minutos antes, quando eu começava a despertar. Eu o trouxe para perto de li a mensagem dela.


Título: É mágico!


Minha mãe foi a pessoa que mais amei, foi a pessoa mais importante da minha vida, por muito tempo. Quando fiquei grávida de você, nunca havia me ocorrido que eu teria um filho. Perdi a minha mãe. Tinha que ter uma filha para que o universo ficasse perfeito outra vez.


Você logo vai fazer quarenta anos e ela morreu há mais ou menos quarenta anos. Você nunca a conheceu, e você é quem a fará viver para sempre.


É mágico! E sim, o universo está perfeito outra vez.


Obrigada, meu bem. Eu te amo muito.


Então, chamei esse lugar de luta de Maternidade, pois aqui foi onde vi Deus face a face e ainda assim minha vida foi poupada” (páginas 302 a 304).


Por Débora Andrade (Psicóloga Clínica e Perinatal | CRP-09/13859)



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