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ANÁLISE DA SÉRIE 'BOM DIA, VERÔNICA'

Bom dia, Verônica é o mais recente lançamento da plataforma Netflix. A série brasileira retrata a trama de uma delegacia de homicídios na investigação de um abusador em série e de um serial killer. Longe de ser uma imitação norte-americana, a história se desenrola tratando a realidade brasileira de forma realista. Envoltos no suspense, sentimos a cada cena, o corte do real, a violência escancarada.

De forma trágica e realista, a série gira em torno, principalmente, da relação entre a mulher e a violência no Brasil. Só em abril deste ano, no início da quarentena as denúncias de violação aos direitos das mulheres, feitas pelo telefone 180, aumentaram 36% em comparação ao mesmo período de 2019. No enlace entre ficção e realidade, personagem e roteiro juntam-se para divulgar o telefone da própria Verônica, a escrivã que confronta o abusador sexual. Pelo (21) 3747-2600 mulheres vítimas de agressão podem buscar ajuda e receber apoio de especialistas.

Já comecei o primeiro episódio impactada. Um suicídio de início. Suicídio de uma mulher dentro de uma delegacia de homicídios, logo após denunciar a violência que havia sofrido por um homem. Seu semblante apático, a boca machucada da substância usada para dopá-la, o corpo magro e os ombros caídos, ao vê-la, estava claro, há algo de errado. O tiro na têmpora, sem pestanejar, único caminho encontrado para acabar com tamanha dor. Na cena, tudo em câmera lenta, vemos o percurso de cada gota de sangue, a água transbordando do copo abandonado na tentativa de evitar a tragédia anunciada, o desespero e o grito de Verônica.

A partir disso começa o tortuoso caminho da escrivã em busca de justiça para aquela mulher. No entanto, para os demais não era tão importante. Afinal, a mídia estava em busca de satisfação da delegacia. Verônica, de certa forma, rompe com direcionamentos e atitudes que acabam por contribuir para o ciclo de violência. Ao dar seu número em uma coletiva de imprensa, não era apenas a mulher que suicidou na delegacia, eram várias. Mulheres vivendo a violência no próprio corpo e mente. Com isso, além de um abusador em série, a personagem recebe um telefonema. Janete.

Desde o princípio sentimos algo perturbador na relação entre Janete e o marido Brandão. Um relacionamento extremamente abusivo e Janete, como em um loop, revivendo o ciclo tensão-violência-lua de mel. Cortes de cenas, a rodoviária, mulheres (mais mulheres) o sequestro, olhos tampados, o sítio, a caixa na cabeça, a suspensão como que uma pássaro. A perversão de Brandão.

Poderia adentrar na constituição psíquica do perverso, contudo, por trás disso existe uma história, uma sociedade e uma cultura. A série se estrutura justamente nisso. Existe uma perversão social. Vivemos um processo de desumanização, tudo se torna coisa, até mesmo o ser humano. A cultura como instância formadora deixa de atuar como tal, reproduzindo indivíduos semiformados. Se produz uma falsa experiência, que convence e aponta para a satisfação através da manipulação e alienação. Os sujeitos perdem o potencial crítico inalienável da cultura, além de servir como base para a dominação. A repercussão disso é a sujeição dos indivíduos às violências sociais, de forma que, ao ser internalizada, pode se materializar através de traços sadomasoquistas, nos quais o sujeito não mais empatiza-se com o próprio sofrimento ou o sofrimento alheio. Isso explica a indignação do expectador diante da atitude majoritária das pessoas diante da violência. Parece inaceitável não fazer nada ou preocupar-se mais com a própria imagem, ganância e corrupção do que com a vida das vítimas. Ao mesmo tempo, nos vemos, também, nessa posição de nada estar fazendo para transformar a realidade. Sentimos a todo momento nossa impotência diante da violência estrutural.

Histórias não absorvidas, mas negadas. Desumanização do outro e de nós mesmos. Essa desumanização decorre do fato de ser por meio da cultura e consequentemente da história que o sujeito se humaniza e se torna aquilo que é. Assim, ao aniquilar histórias, desumanizamos nossas relações sociais e, portanto, a nós mesmos, visto que a constituição do sujeito dá-se a partir do outro. Nesse contexto, o processo de coisificação dos indivíduos vai se tornando cada vez mais evidente. Corpos que não tem nome.

O gozo diante da dor do outro. O entorno que legitima o sofrimento e retira a potencialidade crítica. A figura de Verônica vai de encontro a esse padrão. Em meio à ideologia da responsabilidade, na qual a atribuição do êxito ou do fracasso são direcionados ao indivíduo, legitima-se qualquer conduta sádica. A culpa é da mulher. A dor do abuso cresce com a despersonalização da injustiça expressa nas atitudes de algumas personagens.

Brandão e todo o sistema corrupto personificam a barbárie civilizatória. O sítio, o orfanato instauram-se como monumento da barbárie. Como afirma Walter Benjamin “nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie”. Indivíduos assentados sob uma consciência alienada, naturalizando aquilo que é socialmente construído. Há assim uma desistorização e ultrageneralização da particularidade, gerando uma correspondência entre particularidade e universalidade.

No final, nos perguntamos: o que fazer? Verônica encontrou sua forma de lidar com isso dentro da ficção. Mas e na realidade? Como resistir a isso? Não seriam as personagens a personificação do que existe em todos nós? O sadismo nosso de cada dia. O bem e o mal. O vilão e o herói. Tudo emaranhado em cada um. É possível ao homem moderno resistir à barbárie que o enterra no mais profundo da violência, dizimando aquilo que o torna humano?

A violência é intensificada através da aliança contemporânea entre narcisismo e pulsão de morte, objetivando a eliminação daquilo que o desejo explicita: a falta, a impossibilidade de completude, isto é, a eliminação do próprio desejo e consequentemente a exclusão do outro, já que este se coloca como objeto de desejo do sujeito e o coloca como objeto de desejo. Resistir à violência implica o fortalecimento do sujeito, que pode dar-se através das instâncias formativas, que devem promover o esclarecimento, a fim de propiciar uma consciência do próprio sofrimento para opor-se a ele.

Por Débora Andrade (Psicóloga | CRP-09/013859)



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