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RESENHA - A FILHA PERDIDA, ELENA FERRANTE



A filha perdida é um romance escrito pela autora Elena Ferrante, reconhecida como uma das autoras mais importantes da literatura contemporânea. Este, na verdade, é o pseudônimo da romancista italiana cuja verdadeira identidade é desconhecida do público. Em entrevistas compiladas no livro "Frantumaglia: os caminhos de uma escritora", a escritora refere que sua intenção é a identificação do leitor com suas narrativas e não com sua figura. De fato, é o que acontece, especialmente, em nós mulheres. O realismo de Elena Ferrante nos toca, apesar de não sabermos exatamente de que forma. Sentimos ambivalência e contradição.. e quer algo mais humano do que isso?

Em suas obras, duas temáticas se destacam: maternidade e a relação de amizade entre mulheres, assunto pouco desenvolvido na literatura, o que torna esta uma especificidade de Elena Ferrante.

Bom, em relação a esta obra, antes precisamos compreender dois mitos fundantes da nossa cultura no que concerne ao que a sociedade espera como papel social da mulher e da mãe. Segue abaixo uma pintura do artista alemão Ferdinand Max Bredt (1868–1921), intitulada "Eve et Marie":

Escolhi esse quadro, justamente, por ilustrar com clareza a mulher cindida criada pela nossa cultura judaico-cristã.
De um lado, temos a imagem da mulher que concebeu sem sexo, uma mãe virgem e pura. Maria diz da idealização da maternidade como algo sublime, perfeito. Em sua representação, vemos uma mãe que é delicada, que tem afeto e carinho pelo seu bebê. Ela possui ternura no olhar, é um corpo que cuida, é graciosa e transmite paz, calma, calor. Tudo isso, claro, pode acontecer quando a mulher se torna mãe. No entanto, a maternidade não se resume a isso.
Do outro lado, temos o símbolo do segundo mito fundante na figura de Eva, a mulher desejante e pecadora. A mulher que deu vazão ao seu desejo. Esse mito se assemelha a outros da história da humanidade, como o mito de Pandora e até mesmo a mulher bruxa.

Em A filha perdida, Elena Ferrante faz esses dois mitos conversarem através da personagem principal: Leda, uma mulher extremamente desejante e que ama suas filhas. Por evidenciar a contradição da convergência desses dois mitos em uma única figura, podemos afirmar o caráter perturbador da narrativa. Afinal, desmistifica a concepção da maternidade como uma experiência apenas de amor incondicional e imediato.

O romance é narrado em primeira pessoa por Leda (narradora-personagem), que é uma professora universitária prestes a completar 48 anos. Ela é divorciada e tem duas filhas com idades por volta dos 20 anos: Marta e Bianca. As duas meninas foram morar com o pai no Canadá e Leda continuou residindo em Florença.

O livro tem início com um acidente de carro sofrido por Leda, de modo que a narrativa se trata da personagem nos contando os acontecimentos anteriores a esse fato. Ela revela o que, de fato, a levou a se acidentar, tamanha perturbação desencadeada pelos eventos precedentes.

Com as filhas vivendo com o pai, ela decide fazer uma viagem sozinha para a costa italiana levando seus materiais para lá planejar o próximo semestre na universidade. Na praia ela observa uma família, em especial, uma mãe bem mais jovem do que ela e que está com sua filha que, por sua vez, carrega consigo uma boneca. Essa boneca se torna um elemento essencial da narrativa e, para melhor entender a relevância desse emblema, precisamos resgatar a importância dada por Elena Ferrante às bonecas em diversos romances. Nos perguntamos, então, o que representa a boneca?

A boneca é o principal brinquedo dado às meninas e que, de alguma forma, ensina à mulher um papel de gênero. É como se fosse um "treino" das habilidades que serão convocadas quando a menina for adulta, habilidades estas relacionadas ao cuidar.

Voltando à narrativa, nessa praia, Leda descrever a relação entre a jovem mãe-filha-boneca como harmoniosa. O que pode ser visto a partir do seguinte trecho:


"Durante algum tempo, eu não soube se era a mãe ou a filha que se chama Nina, Ninù, Ninè, os nomes eram muitos e foi difícil, em meio à densa trama de chamados, chegar a uma conclusão. Depois, de tanto ouvir vozes e gritos, entendi que Nina era a mãe. Com a menina foi mais complicado, e no início me confundi. Achei que ela tivesse um apelido tipo Nani ou Nena ou Nennella, mas depois compreendi que aqueles eram os nomes da boneca, da qual a menina nunca se separava e à qual Nina dava atenção como se estivesse viva, quase uma segunda filha. A menina na verdade se chamava Elena, Lenù; a mãe sempre a chamava de Elena, e, os parentes, de Lenù.Não sei por quê, mas anotei aqueles nomes no meu caderno, Elena, Nani, Nena, Leni - talvez eu gostasse da forma como Nina os pronunciava. Ela se dirigia à menina e à boneca em uma cadência dialetal agradável, aquele napolitano que eu adoro, afetuoso nas brincadeiras e nos momentos de alegria. As línguas, para mim, têm um veneno secreto que de vez em quando aflora e para o qual não há antídoto. Lembro-me do dialeto na boca de minha mãe quando perdia a cadência meiga e gritava conosco, intoxicada pela infelicidade: não aguento mais vocês, não aguento mais. Ordens, gritos, insultos, um prolongamento da vida nas suas palavras, como um nervo lesionado que, assim que é tocado, arranca junto com a dor qualquer compostura. Em uma, duas, três ocasiões ameaçou a nós, suas filhas, dizendo que iria embora, vocês vão acordar de manhã e não vão mais me encontrar. Eu acordava todos os dias tremendo de medo. Na verdade, ela sempre estava lá; nas palavras, vivia sumindo de casa. Aquela mulher, Nina, parecia serena, e eu senti inveja" (Capítulo 4, páginas 20/21).


O relato de Leda mostra a oposição entre suas memórias evocadas e a cena vislumbrada. Enquanto fala da harmonia que vê, ela resgata a desarmonia vivida com a própria mãe, uma mãe que estava sempre dizendo que iria embora. Nesse trecho, podemos destacar a metáfora utilizada por Elena Ferrante quando menciona o termo "nervo lesionado". Tal figura de linguagem remete à experiência perturbadora da maternidade. É como se Leda fosse uma mãe que tem o sistema nervoso perturbado, tem o "nervo lesionado".

No primeiro dia, quando está voltando para seu apartamento, uma pinha cai nas costas de Leda, a machucando. Após esse episódio, segue a seguinte narrativa da personagem:



"Senti necessidade de ligar para minhas filhas, contar o incidente. Marta atendeu e começou a falar, como sempre fazia, rápido e com a voz estridente. Tive a impressão de que ela temia, mais do que de costume, que eu a interrompesse com alguma pergunta insidiosa, uma repreensão, ou simplesmente que eu transformasse seu tom exagerado-alegre-irônico em um sério, que lhe imporia perguntas e respostas verdadeiras. Falou por muito tempo de uma festa à qual ela e a irmã tinham que ir, não sei bem quando, se naquela mesma noite ou no dia seguinte. O pai fazia questão, amigos dele estariam presentes, não apenas colegas da universidade, mas pessoas que trabalhavam na televisão, pessoas importantes que ele queria impressionar, mostrar que, embora ainda não tivesse cinquenta anos, tinha duas filhas já crescidas, educadas e bonitas. Ela falava sem parar e, em um dado momento, começou a reclamar do clima. O Canadá, exclamou, é um país inabitável, tanto no inverno quanto no verão. Marta não perguntou como eu estava, ou talvez tenha perguntado, mas não deu tempo de responder. Também era provável que não tivesse citado o pai, eu é que o ouvi entre uma palavra e outra. Nas conversas com minhas filhas, ouço palavras ou expressões omitidas. Às vezes, elas ficam com raiva e dizem mamãe, eu nunca falei isso, é você que está dizendo, você inventou isso. Mas eu não invento nada, só escuto, o não dito fala mais do que o dito. Naquela noite, enquanto Marta divagava com sua rajada de palavras, imaginei por um instante que ela não tivesse nascido, que nunca tivesse saído da minha barriga, que estivesse no ventre de outra - de Rosária, por exemplo -, e que nasceria com uma aparência diferente, uma receptividade diferente. Talvez fosse o que ela sempre desejara em segredo: não ser minha filha. Ela estava falando de maneira neurótica sobre si mesma, a um continente de distância. Falava dos cabelos, que precisava lavá-los o tempo todo porque nunca ficavam bem, do cabeleireiro que os havia estragado, e que, por isso, não iria à festa, jamais sairia de casa daquele jeito, só Bianca iria, com os cabelos lindos dela, e falava como se a culpa fosse minha, eu não a fizera de uma maneira que pudesse ser feliz. Queixas antigas. Ele me parecia frívola, sim, frívola e chata, situada em um espaço distante demais daquele outro, à beira-mar, à noite, e então a perdi. (...) Quando encerrei a ligação, estava arrependida de ter telefonado, sentia-me mais agitada do que antes, meu coração batia forte" (Capítulo 8, páginas 38/39).

A partir dessa leitura, notamos que a perturbação materna se presentifica desde o nascimento das filhas até o momento presente da narrativa. Inclusive, Leda afirma que ficou ainda mais agitada após a ligação com as filhas.

No avançar da história, Leda vai conhecer Nina e sua família, quando a criança some na praia e ela ajuda a encontrá-la. No entanto, a menina fica arrasada, pois sua boneca havia desaparecido.

É então, que, nós leitores, descobrimos que Leda pegou a boneca. Esse fato gera tremenda inquietação, que por sua vez não tem resposta. Passamos toda a narrativa nos questionando: por que ela fez isso? por que ela sequestrou a boneca da menina?

A partir da relação que emerge entre Leda e a boneca raptada, ocorrem rememorações. Uma das situações destacadas pela personagem é sobre a dificuldade que teve para conciliar a maternidade com a carreira, principalmente, quando as filhas ainda eram pequenas. Então, Leda relata um fato que obstaculiza o mito de Maria-mãe-virgem-pura-dedicada. Ela conta de quando resolveu abandonar as filhas para ir morar com um homem que havia conhecido em um evento acadêmico:
Gianni, quando voltei, me repreendeu por ter ligado apenas duas vezes em quatro dias, quando Marta estava doente. Eu respondi: estive muito ocupada. Disse também que, depois do que havia acontecido, precisaria trabalhar muito para estar à altura da situação. Comecei a passar, em sinal de provocação, dez horas por dia na universidade. Desde a nossa volta a Florença, meu professor, com repentina disponibilidade, fez o possível para que eu logo publicasse um novo trabalho, e colaborou ativamente com Hardy para que eu fosse trabalhar por algum tempo na universidade dele. Entrei em uma fase de frenética e dolorosa atividade. Eu trabalhava muito e, ao mesmo tempo, sofria, pois achava que não podia viver sem Hardy. Escrevia longas cartas para ele, telefonava. Se Gianni, especialmente no fim de semana, estava em casa, eu corria para um telefone público, arrastando Bianca e Marta comigo para não levantar suspeitas. Bianca escutava os telefonemas e, embora fossem em inglês, captava tudo sem entender; eu tinha conhecimento disso, mas não sabia o que fazer. As meninas ficavam ali ao meu lado, mudas e confusas, eu nunca esqueci, nunca esquecerei. Todavia, eu irradiava prazer contra a minha própria vontade, sussurrava frases carinhosas, respondia a alusões obscenas e fazia alusões obscenas. Só ficava atenta - quando puxavam minha saia, quando diziam que estavam com fome ou queriam um sorvete ou um balão do vendedor que estava a um passo dali - para não gritar chega, vou embora, vocês não vão mais me ver, exatamente como minha mãe fazia quando estava desesperada. Ela nunca nos deixou, mesmo gritando para nós que o faria; já eu deixei minhas filhas quase sem aviso (Capítulo 19, páginas 120/121).


Esse momento da narrativa escancara o conflito dos dois mitos, pois vêm à tona uma mulher desejante e ao mesmo tempo mãe. O fato de Leda ter ficado três anos sem ver as filhas choca Nina e Rosária, para as quais ela contou a situação, e choca também o leitor. Entretanto, a partir desse compartilhar, Nina começa a se abrir com Leda, mostrando que para ela a maternidade também não era sempre perfeita, essa experiência de harmonia. Nina também vai colocar em voga o conflito mulher desejante versus mulher mãe, especialmente, quando descobrimos que ela possui um amante. Com esse fato, vemos como mulheres de diferentes gerações trocam suas confidências, se aproximam e testemunham a ambivalência da maternidade.

Em um último encontro entre Leda e Nina, a personagem devolve a boneca, o que deixa a jovem mãe transtornada e indignada por ela não ter entregado a boneca antes, causando sofrimento à menina e a ela. Nesse momento da narrativa é que Leda decide voltar para casa, mas sofre o acidente.

As rememorações ao longo do enredo, tanto de Leda como filha, quanto como mãe, implicam uma experiência limite. Um limite que quase custa a própria vida da personagem, tamanha desordem e perturbação causadas.

Por fim, o questionamento que fica é: quem é a filha perdida? É Leda, são as filhas de Leda, é Nina, Elena, a boneca? quem? Podem ser todas abarcadas em um título um tanto quanto polissêmico.

Autoria: Débora Damacena de Andrade (Psicóloga Clínica e Perinatal | CRP-09/013859)

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